terça-feira, 24 de agosto de 2010

Através dos vidros

   O possível louco ou bêbado que fora retirado do bar podia ter saído de cena, o que não significou que o homem que pela avenida adentrava tivesse parado seu trajeto.
  Trocando as pernas, ele continuava deixando passos para trás e, mais que isso, o intervalo entre um segundo e outro, como se não importasse o valor em dinheiro que aqueles preciosos instantes pudessem estar rendendo.
  Quem em sã consciência em Preto e Branco não estaria gerando lucro, cobrindo prejuízos, tirando daqui e pondo ali?
  Engraçado pensar em gerar lucro, quando se gera papel; engraçado pensar em cobrir prejuízos, se prejuízos são cobertos entregando papel; engraçado pensar em tirar para por, quando põe para que se possa tirar.
  Gerando, cobrindo, pondo, tirando... que raios aquele homem fazia ali?
  Nada além de estar sendo observado e julgado?
  Observar e julgar...Como se as ruas fossem grandes tribunais com infinitos juízos, todos aprisionados em salas de um prédio, observando o réu por telas de vidro, que nem direito a testemunho tem, já que as pessoas andam olhando os próprios pés, metrificando os passos numa régua invisível, contando cada centímetro para que não haja erros em suas vidas lineares, para que seus rostos de expressões retas não se curvem, traindo as próprias emoções.
  Mas aquele homem que vinha não se preocupava em metrificar os passos, em contar centímetros, talvez porque escondia, através da aba de seu curioso chapéu de botões, as expressões que ao seu rosto poderiam estar traindo ou não.
  Ninguém saberia dizer se as expressões traiam realmente, caso em um dado momento o homem não tivesse levantado a cabeça, seguindo, com a rapidez que somente aos olhos pertence, o vôo de um pássaro que arranhava o ar, sem conseguir capturar algo, além da atenção do estranho espectador.
  Foi assim que de repente pode-se perceber o olhar curvado que o homem possuía, e que nele não havia ave refletida, nem emoção alguma, apenas o reflexo de prédios retos com suas janelas abertas e fechadas, deixando o vento passar sem transparecer qualquer forma de movimento conseqüente...
  Observado, julgado, condenado culpado e desocupado, assim fora considerado no olhar dos juízes dos grandes prédios, o homem da cidade Preto e Branco, quando na rua ele se auto julgou a única testemunha dos crimes cometidos por todas as pessoas que tentavam lucrar em disfarçar as emoções, cobrir os prejuízos da alma, tirar tristeza daqui para por ali, de forma a amenizar a dor de saber que nenhum coração jamais conseguirá bater no mesmo intervalo de tempo, sem acelerar e desacelerar, em certos momentos, quanto os passos que se dão no andar equilibrado em cima da régua invisível de quilômetros de infelicidade.
  É que a emoção jamais será parte simétrica da razão, mesmo quando divididas por uma régua.