quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Os Botões

  Por entre as avenidas da cidade Preto e Branco, a luz do dia amanhecia e com ela amanhecia também os passos na rua.
  Uns passos silenciosos, outros barulhentos, apressados, conturbados, atrapalhados, esbarrados, mas todos trocados...
  Sabe-se lá de quem seriam, para onde iam, depois de quanto tempo parariam, se  chegariam...
  Acontece que, entre todos os passos, lá estava também o do curioso homem que havia sido o alvo dos julgamentos feito pelos juízes protegidos através dos vidros.
  Os passos dele não eram como o dos outros, era apenas um passo picado aqui, e outro logo ali, não avançavam de forma rápida e contínua, apenas deslocavam-se para o lado e voltavam, como quem procura por algo no chão.
  E era isso o que ele fazia: procurava... por botões!
  Sim, botões perdidos na confusão do dia a dia, que eram esquecidos e, muitas vezes, nem percebidos, guardando todos em sua pequena caixinha.
  Por que o fazia? Sabe-se lá... Ele não sabia.
  Mas sujeito ao acaso, um homem de aparência comum, de passos apressados na rua esbarrou em seu corpo, fazendo com que todos os botões recolhidos até o momento fossem ao chão.
  Não parou para ajudar e muito menos se desculpar, continuou em sua pressa... Talvez fosse o único caminho que conhecesse.
  Ao contrário, o homem zeloso dos botões abaixou-se para pegá-los novamente, enquanto pessoas aleatórias resmungavam:
  ‘’ Se trabalhasse não atrapalharia o caminho de quem passa... ‘’.
  As palavras alheias assim eram resmungadas como se o caminho não fosse para que ele passasse com o corpo, como faziam todos, e sim para que passasse apenas, e muito de longe, com o olhar.
  E, olhando ao redor, talvez procurando também a sensibilidade de cada ser que por ali passava, o homem dos botões captava as mínimas cenas que aconteciam ao piscar do sinal verde e vermelho do farol.
  Ah, se seus olhos fossem uma dessas máquinas de tirar retratos...
  Foi quando notou na calçada duas pequenas e sujas mãozinhas de um menino abandonado ajudando-o a recolher seus mimos.
  Bastou esse gesto e o homem deu-se conta de repente de qual era o sentido de recolher e guardar com tanto carinho cada um daqueles botões: não fazia deles uma coleção, pois sendo velhos ou novos, o destino deles era ter entre seus furinhos, veias de linha passando, costuradas em tecidos simples ou refinados, com abrigo em uma casa.
  E as ruas? Fariam coleções de pessoas abandonadas?
  E aquela criança? Teria veias de alegria passando em seu corpo? Um abrigo?
  Não sabia, assim como também não sabia o que faria se soubesse.
  Tirou o chapéu, agradeceu ao menino e continuou em busca de seus botões...
  Em sua cabeça, o homem teve a certeza de que a dimensão do fato não caberia jamais em sua pequena caixinha.



terça-feira, 24 de agosto de 2010

Através dos vidros

   O possível louco ou bêbado que fora retirado do bar podia ter saído de cena, o que não significou que o homem que pela avenida adentrava tivesse parado seu trajeto.
  Trocando as pernas, ele continuava deixando passos para trás e, mais que isso, o intervalo entre um segundo e outro, como se não importasse o valor em dinheiro que aqueles preciosos instantes pudessem estar rendendo.
  Quem em sã consciência em Preto e Branco não estaria gerando lucro, cobrindo prejuízos, tirando daqui e pondo ali?
  Engraçado pensar em gerar lucro, quando se gera papel; engraçado pensar em cobrir prejuízos, se prejuízos são cobertos entregando papel; engraçado pensar em tirar para por, quando põe para que se possa tirar.
  Gerando, cobrindo, pondo, tirando... que raios aquele homem fazia ali?
  Nada além de estar sendo observado e julgado?
  Observar e julgar...Como se as ruas fossem grandes tribunais com infinitos juízos, todos aprisionados em salas de um prédio, observando o réu por telas de vidro, que nem direito a testemunho tem, já que as pessoas andam olhando os próprios pés, metrificando os passos numa régua invisível, contando cada centímetro para que não haja erros em suas vidas lineares, para que seus rostos de expressões retas não se curvem, traindo as próprias emoções.
  Mas aquele homem que vinha não se preocupava em metrificar os passos, em contar centímetros, talvez porque escondia, através da aba de seu curioso chapéu de botões, as expressões que ao seu rosto poderiam estar traindo ou não.
  Ninguém saberia dizer se as expressões traiam realmente, caso em um dado momento o homem não tivesse levantado a cabeça, seguindo, com a rapidez que somente aos olhos pertence, o vôo de um pássaro que arranhava o ar, sem conseguir capturar algo, além da atenção do estranho espectador.
  Foi assim que de repente pode-se perceber o olhar curvado que o homem possuía, e que nele não havia ave refletida, nem emoção alguma, apenas o reflexo de prédios retos com suas janelas abertas e fechadas, deixando o vento passar sem transparecer qualquer forma de movimento conseqüente...
  Observado, julgado, condenado culpado e desocupado, assim fora considerado no olhar dos juízes dos grandes prédios, o homem da cidade Preto e Branco, quando na rua ele se auto julgou a única testemunha dos crimes cometidos por todas as pessoas que tentavam lucrar em disfarçar as emoções, cobrir os prejuízos da alma, tirar tristeza daqui para por ali, de forma a amenizar a dor de saber que nenhum coração jamais conseguirá bater no mesmo intervalo de tempo, sem acelerar e desacelerar, em certos momentos, quanto os passos que se dão no andar equilibrado em cima da régua invisível de quilômetros de infelicidade.
  É que a emoção jamais será parte simétrica da razão, mesmo quando divididas por uma régua.


sexta-feira, 30 de julho de 2010

Episódio em um bar


  Com uma moeda na mão, uma pergunta pode ser comprada e foi assim que se sucedeu quando, de fato, sentado em uma cadeira num bar de avenida, um estranho comprou uma pergunta de si mesmo:
  ‘’ Essa moeda estará em sua posse se você conseguir responder a uma pergunta que agora me atormenta: quem é mais feliz, a cara ou a coroa de uma moeda?‘’                              
  Talvez o estranho fosse um louco, ou não tivesse na vida companhia alguma para conversar, ou mesmo só estivesse um tanto embriagado, mas sábio, ah sábio ele era sim.
  A conversa com ele mesmo era alta, todos podiam escutar:
  ‘’ Pode dizer com sinceridade, eu sei que você responderia que as duas faces são felizes, afinal entalhado em metal valioso ao invés de carne que se decompõe, quem não seria? ‘’
   ‘’ Meu caro, não existe duas faces, uma é exatamente a sombra da outra... Uma e outra, nada mais que outra... Outra e uma, apenas uma. ‘’

  Eis que a filosofia do estranho fora interrompida por um homem e sua sombra, que adentrava a avenida no campo de visão que a janela permitia.
  A sombra que se projetava era maior que o homem. Aliás, toda sombra é maior do que quem a projeta...
  E o estranho ouviu mais uma pergunta sua:
  ‘’ Mas quem seria realmente maior, a infelicidade visível nos passos do homem que vem ou a sombra que o segue? ‘’
  ‘’ Não existe o homem e a sombra, não existem os dois, apenas um... a lição que foi ensinada instantes atrás dizia assim . ‘’
  ‘’ Mas lembre-se, meu caro, não se trata mais uma vez de metal, com ou sem valor, trata-se apenas de carne que se decompõe e uma sombra, no chão. E então, o que me diz?‘’
  ‘’ A sombra... a sombra é maior... Toda infelicidade é negativa, é menor. Mas a sombra, ela é dúvida, pode projetar escuridão, mas quem disse que projeta infelicidade ou felicidade? A sombra é só algo que os nossos olhos ainda não aprenderam a enxergar, como sons que nossos ouvidos não conseguem captar.‘’
  Nesse tempo que fora percorrido, as pessoas do bar estavam incomodadas com a possível presença de um louco entre elas, afinal, em Preto e Branco, só o fato de indagar era fora do comum, mas indagar sobre felicidade era algo absurdo, e o estranho tivera que ser retirado do local.
  Ele se levantou, não fez escândalo para permanecer e nem reivindicou direitos, apenas voltou seus olhos em direção a cadeira em que havia sentado e disse:
  ‘’Só não se esqueça, meu caro, que, a sombra é maior porque quem a determinou assim na sua cabeça, foi você mesmo... ‘’
  Uma única moeda naquele bar, que não era suficiente para comprar mais doses de bebida, conseguiu comprar perguntas e escolhas, mas não respostas.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A Cidade Preto e Branco

    Em cada casa um relógio diferente, em cada casa o mesmo tempo de todas as outras casas.
  Fosse o tempo brincar de ser relativo em cada uma delas, ser lento em umas, ser rápido em outras, porque se existe alguém para ser, estar, mudar e conjugar-se, só poderia ser ele.
  Mas ele não gosta de mudar, de se fantasiar dele mesmo... Não nessa cidade em que todas as pessoas são apenas prédios que se movem sobre pernas e são acimentadas pela frieza de nunca terem conhecido o pulsar dos sentimentos na própria veia.
  Em Preto e Branco ninguém vive, apenas move-se... por mover-se.